domingo, 12 de janeiro de 2014

Leitura obrigatória: José Rodrigues Migueis

– Oh rais ta parta a minha sorte!
Nesse instante sentiu que alguma coisa de duro, mão ou tenaz, o agarrava com violência pelos rins, dando-lhe a sensação dum ferro em brasa, e teve este pensamento de renúncia «Estou catrafi lado!» Mas, é curioso, recobrou simultaneamente a calma e a esperança.
O que quer que fosse puxou por ele com força, e ele deixou-se levar passivamente, até que, com o cordão do saco a estrafegá-lo, conseguiu endireitar o corpo e firmar-se nas pernas bambas. Aquela mão de ferro, invisível, arrepanhava-lhe as roupas e as carnes, macerando-o e magoando-o. Depois, com um safanão supremo, quase o ergueu do chão e fê-lo dar uma reviravolta.
Levantou os olhos e viu diante de si um grande vulto negro, um capote de oleado reluzente de chuva, uma farda com botões de metal e uma chapa cor de prata. O agente da polícia inclinou para ele o rosto vermelho e robusto:
– Stowaway, eh? – e sacudiu-o com energia, como se o quisesse despertar do torpor. – Passageiro clandestino? – repetiu, e riu-se. – You speak English?
(...)– Eu não espique inglish, eu não espique!
O agente largou uma risada de gozo e tornou a sacudi-lo:
– No eespeek! No eespeek!
Tinha um hálito quente, de tabaco e whisky. Na fria humidade de Dezembro, um homem precisa de alguma coisa que lhe aqueça as entranhas, para andar assim de ronda pelos cais desertos, entregue aos seus pensamentos. Depois, na noite de festa, de porta em porta ao longo das tabernas e saloons da borda-d’água – Merry Christmas, Mack! – há sempre quem tenha uma franqueza com a Autoridade, e a gente não é de pau, nem pode fazer uma desfeita, recusar... A verdade é que um trago ou dois dispõem muitas vezes um homem a ser mais tolerante com as fraquezas humanas.
Ficaram assim um pedaço, frente a frente, ele à espera, a contar os minutos de vida, e o agente talvez a dar balanço à situação, a macerar-lhe devagar o ombro magro na tenaz de ferro da manápula, e repetindo a meia-voz:
– No eespeek, no eespeek...
Pequeno como um murganho, a tremer de medo e frio na fatiota leve, à espera da sentença – quem sabe até se o guarda, enraivecido, não lhe ia dar um empurrão, atirá-lo à água? – o passageiro clandestino olhava fixamente os botões da farda, o cassetete comprido e polido.
O agente disse ainda qualquer coisa que ele não entendeu, e apertou-lhe os ombros com mais força, a tactear-lhe os ossos, talvez a ensaiar esmagar-lhos pelo simples prazer de exercer forças naquela fragilidade.
Depois, de repente, obrigou-o a dar meia volta, de cara à terra, apoiou-lhe a mão enorme e espalmada nas costas, e empurrou-o:
– Now run!
Não precisou de entender, e correu: correu sem saber aonde ia, nem se o guarda lhe ia dar um tiro pelas costas como a um ladrão das docas que desobedece à ordem de Alto!, ou se realmente o mandava embora, livre, sem o prender nem o forçar a regressar a bordo. Correu às cegas, a mastigar palavras sem tom nem som, a esbarrar em paredes, a trepar em caixotes, em fardos, em cordames, em máquinas, confuso e perdido, incapaz de encontrar a saída daquele labirinto.
Foi quando a voz do polícia lhe atirou à distância, pela rectaguarda:
– Hey! Merry Christmas!...
O clandestino estacou, compreendendo vagamente, e só nesse instante se lembrou que era Noite de Natal. Então com a garganta apertada, a rir e a chorar, transpôs umas calhas ferroviárias, pulou uma vedação de rede de arame, e deitou a correr em campo aberto, nas trevas.
De longe, o clarão agora mais vivo da cidade guiava-lhe os passos, como o reflexo de misteriosa estrela oculta, ou de lareira acesa, chamando-o à consoada.
José Rodrigues Miguéis, Gente de Terceira Classe, 1962,
imagem de http://g1.globo.com/sao-paulo/itapetininga-regiao/noticia/2011/12/asilo-clandestino-e-fechado-nesta-quinta-feira-em-tatui-sp.html

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